Em novembro de 2022, a Prefeitura de Pacatuba (a 35km de Fortaleza) abriu uma licitação para a compra de materiais de limpeza para 12 órgãos municipais. No processo, alguns detalhes chamaram a atenção: valores, empresas vencedoras e a aquisição de alguns itens aparentemente não justificáveis.
Homologada em janeiro deste ano, a licitação possui o valor total de R$ 5.047.460,50 e três empresas licitantes venceram. Um ponto em comum entre elas é a atuação em vários segmentos que se diferem entre si, para além dos itens dispostos no processo licitatório.
A observação pode ser constatada na descrição das atividades secundárias. De acordo com o registro junto à Receita Federal e ao Ministério da Fazenda, as empresas são, primariamente, varejistas em papelaria e mercearia, e não em itens de material de limpeza.
Contradições
Entre os segmentos descritos no Comprovante de Situação Cadastral estão fabricação de alimentos e pratos prontos, peças e acessórios para veículos, além de materiais de construção. As empresas também atuam na manutenção de ar-condicionado, próteses e artigos de ortopedia. Confira a lista completa:
Inconsistências
Apesar de declarar atuação em tantas frentes, as empresas não possuem capacidade suficiente para fornecer o prometido. Segundo a declaração cadastral, as três possuem porte de microempresas, variando de 1 a 10 funcionários.
A arrecadação declarada também não é compatível com as atividades descritas. Duas empresas possuem faturamento presumido mensal de R$ 59.400,00 e a outra de R$ 64.800,00. Levando em conta que a receita das empresas venha apenas do contrato com a Prefeitura, o valor total da licitação dividido por 12 meses já ultrapassa o faturamento presumido mensal. Conforme o Portal da Transparência, o valor dos produtos fornecidos por cada empresa ultrapassa R$ 1 milhão.
Superfaturamento?
Ainda em se tratando de valores, alguns preços informados no documento de homologação superam os preços médios dos respectivos produtos. Por exemplo, uma embalagem de 5 litros de álcool etílico 70% que custa, em média, R$ 60,00 foi comprada por R$ 106,25. Só neste item, há um aumento de 56% com o preço médio praticado no mercado.
Outro fato curioso na licitação é a aquisição de itens não justificados, como aparelhos de barbear e pentes de cabelo. Conforme o documento divulgado pela Prefeitura de Pacatuba, são 500 unidades de cada item. No total, a aquisição de cada lote dos referidos produtos custou mais de R$ 1.200 aos cofres públicos.
Visão jurídica
Com o objetivo de esclarecer os pormenores de uma licitação, a Rede ANC entrou em contato com o advogado Maia Filho, que pontuou alguns detalhes deste tipo de certame. Segundo o profissional, o Estado é um grande demandante de bens de consumo e precisa de uma metodologia para fazer essas aquisições. Porém, diferente de uma empresa normal, a gestão precisa se atentar à impessoalidade no ato da escolha dos fornecedores.
“As relações pessoais são vedadas na administração pública porque você é administrador da coisa alheia, e para unir esses dois valores é que surge a licitação. Você tem que comprar bens e produtos, mas não pode escolher pessoas”, explicou Maia.
Conforme o advogado, o Estado também não deve pagar por um bem ou por um serviço mais do que é cobrado na modalidade particular. Afinal, como a compra é feita em quantidades grandes, em tese, o preço deveria ser menor.
Comumente, a licitação tem dois objetivos centrais: escolher a proposta mais vantajosa para a administração pública, o que não necessariamente é a mais barata, e garantir a impessoalidade e a isonomia. Por isso, não pode haver a contratação de empresas de amigos ou familiares, o que caracteriza interesse próprio. Para ilustrar esse ponto, o advogado citou um episódio que ocorreu no Ceará anos atrás.
“Sempre que você fugir do preço razoável haverá uma ilegalidade e quando você direcionar a licitação também haverá uma infração à regra, ao princípio constitucional da impessoalidade”.
“Há uns 15 anos atrás, quando o Cid Gomes escolheu comprar Hilux para a Polícia Militar, eles praticamente colocaram as especificações do manual da Hilux no edital. Ele fez o edital para se moldar a determinado produto. Ele direcionou a licitação, que foi impetrada”, relembrou.
Erros recorrentes
Já não é a primeira vez que a Prefeitura de Pacatuba se envolve com problemas em licitações. Em setembro do ano passado, uma empresa foi contratada para recarga de impressoras, mas, de acordo com o registro, o estabelecimento atua segmento de material de construção. À época, o valor total da licitação foi de R$ 1.186.018,31.
Segundo um levantamento feito pela Rede ANC, algumas licitações no município foram revogadas por não atender de forma devida o interesse público. Em dezembro de 2022, uma licitação foi aberta para a pavimentação em revestimento asfáltico nas localidades do Jereissati III e Bom Futuro, mas foi revogada porque a licitação realizava exigências não amparadas por lei.
Apenas em outubro do ano passado foram duas licitações nessas mesmas condições. Uma para locação de ar-condicionados e equipamentos de refrigeração e outra para aquisição de equipamentos de informática para as secretarias de Educação, Esporte e Juventude. Ambas foram revogada porque o Termo de Referência precisava de ajustes e entendeu-se que o interesse público poderia ser melhor satisfeito por outra via.
Silêncio
A Rede ANC entrou em contato com a Prefeitura de Pacatuba, que direcionou o contato para vários setores diferentes e não providenciou resposta alguma. As empresas também foram procuradas para esclarecer a atuação em vários segmentos, faturamento e capacidade, mas não se pronunciaram.
O Ministério Público do Ceará (MPCE) foi questionado sobre os pontos aqui apresentados e se há algum trabalho de investigação nesse caso. Segundo o órgão, não há nenhuma denúncia formalizada nesse sentido.
Desdobramentos
Na última semana, porém, a secretária de Educação, Esporte e Juventude recebeu o anúncio de que seria exonerada do cargo. Além de titular da pasta, Eliane Almeida também foi a ordenadora de despesa e a responsável pela homologação da licitação do material de limpeza.
Segundo informações de populares, a então secretária havia sido indicada ao cargo pelo seu ex-patrão, Agenor Neto. Eliane se pronunciou sobre o caso através de suas redes sociais e afirmou que não foi surpreendida com o anúncio de seu desligamento.
“Nos últimos meses eu enfrentei algumas situações no meu âmbito profissional, pessoal, de algumas ciumeiras no meu trabalho e eu preferia fingir que nada estava acontecendo. Porém, hoje à tarde eu fui surpreendida com uma ligação da secretária de Finanças me chamando para ter um momento com ela e o Rafael [vice-prefeito]. O Rafael veio conversar comigo que o prefeito havia o informado desde ontem que iria me tirar da Secretaria de Educação por conta dessas coisas que eu estava tomando à frente, como se eu estivesse querendo ter mais visibilidade do que eles”, detalhou.
Eliane declarou também que ficou muito chateada com a notícia e decidiu por dar a sua versão da história em respeito àqueles que sempre a apoiaram. Confira o pronunciamento:
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