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Segunda chance: a busca para garantir direitos aos jovens em centros socioeducativos

“Desde os 14 anos que eu sofria com ele nesses centros. Só rebelião, só maus-tratos. Inclusive, eu o encontrei uma vez, quando ele tinha feito uma cirurgia na perna, ele tinha apanhado tanto dos instrutores que, quando eu fui visitar, ele estava com a perna quase partida”

Maria Girlene, 42 anos

O relato é da costureira Maria Girlene, de 42 anos. Em 2015, ela viu o filho, Francisco Waweste, entrar pela primeira vez no sistema socioeducativo. Na época, a esperança de que a medida se tornasse uma solução para o comportamento problemático do adolescente foi desparecendo conforme recebia os relatos de Francisco. “Dos 14 aos 18 anos, ele passou tempo nos centros socioeducativos, e nenhum o educou a nada, a nada mesmo”, diz a costureira.

Waweste foi vítima das circunstâncias questionáveis do antigo regime socioeducativo. Há sete anos, organizações nacionais e até internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), passaram a observar uma crise fomentada pela violência e precariedade dos serviços de atenção básica nas unidades, que resultaram em uma série de rebeliões, motins e denúncias de tortura. A situação pôs em xeque o caráter de ressocialização que os pais e responsáveis esperavam.

“A violência decorria da superlotação e também da violência institucional, que antes, naquela época, não era regulamentada como hoje é. A violência institucional era citada por conta da jurisprudência, da doutrina, mas não havia uma lei dizendo que havia a violência institucional praticada por agentes públicos”, afirma a promotora de Justiça Antônia Lima, titular da 78ª Promotoria de Justiça de Fortaleza, que realizou um estudo de análise da crise em 2014 e 2015.

Famílias em luto

Depoimento de Benedito Bezerra.

As famílias que sofreram os impactos em primeira mão das injustiças cometidas durante o período relatam com decepção e frustração suas experiências. “Foi no centro, que é para ressocializar os jovens, onde ele aprendeu a fumar maconha. Quando ele saiu, a situação piorou, porque aqui e acolá, ele ainda queria estudar. Mas por causa das drogas, das más influências, em vez dele sair com vontade de mudar, o centro só o fez ele ‘se especializar’ mais ainda”, afirma o senhor Benedito Bezerra dos Santos, de 55 anos, ao falar de seu filho, Jonathan Andrade dos Santos.

“São questões que a gente fica até de mãos amarradas, porque a gente não tem poder de lei para obrigar o Estado a mudar tudo isso”

Benedito Bezerra dos Santos, 55 anos

Jonathan começou a cumprir a medida socioeducativa em 2015, aos 15 anos. As condições de vida no centro eram descritas para o pai, que acompanhava com horror as histórias de agressões físicas e acesso precário a serviços básicos. “Tanto ele quanto outros chegaram a relatar que no final de semana cortavam a água. A comida não era das melhores. Meu filho já disse que comia pão seco. […] A polícia estava entrando para bater neles”, afirma. Jonathan migrou para o sistema prisional e morreu em maio de 2022, atingido por um tiro. Desde então, Benedito se dedica a lutar por mais direitos para as famílias com adolescentes em medidas socioeducativas.

“Os centros socioeducativos não ressocializam ninguém. Tanto que o meu chegou a tirar a própria vida”, relata Maria Girlene. A costureira encontrou o corpo do filho em um domingo de Dia das Mães. Waweste tinha 18 anos. “Nunca mais consegui comemorar”, lamenta.

Depoimento de Maria Girlene.

Diagnóstico da violência

A crise evidenciou a necessidade de intervenção dos órgãos públicos para a garantia de direitos aos jovens em medidas socioeducativas. O Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), em conjunto com a Defensoria Pública do Ceará (DPCE), ingressou com uma Ação Civil Pública (ACP) para corrigir as irregularidades detectadas através de visitas regulares às unidades. Após a formação de um comitê de crise, instaurado por Izolda Cela, na época vice-governadora do Ceará, foi criada a Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo (Seas) para assumir a responsabilidade pelas medidas de privação de liberdade direcionadas aos menores infratores.

“Quando acontece qualquer ato de violência, seja entre pares, seja de um socioeducador para com um adolescente, a orientação é fazer um atendimento de saúde imediatamente com esse menino e, logo em seguida, buscar a delegacia competente para a apuração do ato”

promotora Antônia Lima

Os atos de violência cometidos pelos adolescentes contra outros internos são apurados pela Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), que investiga a ocorrência com o objetivo de identificar e responsabilizar o infrator dentro das medidas vigentes no sistema socioeducativo. “Uns declaram que moram em uma área que é rival de outra área, então pode acontecer isso”, explica a promotora. Os socioeducadores envolvidos nos casos de agressão contra os jovens são responsabilizados em três esferas: administrativas, civil e criminal.

Através da Corregedoria Geral da Seas, um procedimento é instaurado para que seja apurada a responsabilidade do socioeducador. O resultado é encaminhado ao Ministério Público, que requisita um inquérito policial. “Se um adolescente está privado de liberdade e ele é maltratado, nós acionamos a Delegacia de Combate à Exploração da Criança e Adolescente (Dececa) para apurar os atos de violência”, diz Antônia Lima. A 7ª Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude é responsável por apurar a responsabilidade cível do agente acusado.

“São recorrentes as inspeções, monitoramentos e ações da Defensoria, que pretendem assegurar condições mais dignas no cumprimento das medidas em meio fechado. É o caso da atuação da Defensoria como amicus curiae (órgão que colabora em uma questão judicial como um terceiro, que possui grande interesse na discussão), […] a fim de promover o fim da superlotação nas unidades socioeducativas”, afirma o defensor público do Estado do Ceará, Francisco Rubens, que atua no Núcleo de Atendimento aos Jovens e Adolescentes em Conflito com a Lei (Nuaja). Dessa forma, a Defensoria também promove relatórios técnicos e recomendações que buscam assegurar o cumprimento das medidas socioeducativas com “dignidade e respeito” aos adolescentes.

Segunda Chance

Gestor de Saúde do Seas, Marden Filho, em entrevista ao jornalista Robson Nogueira, da Rede ANC.

De acordo com o gestor em Saúde do Seas, Marden Filho, desde 2018, a Superintendência desenvolve, junto ao Sistema Único de Saúde (SUS), um serviço de bem-estar integral aos jovens que cumprem medidas socioeducativas. “Nós entendemos na saúde mental, que os adolescentes, quando entram em privação de liberdade, eles começam a gerar, automaticamente, agravos psicossociais. Então você começa a ver ali pequenas ansiedades, depressões, melancolias, no momento da apreensão e até mesmo no desenvolvimento da medida”, afirma o gestor.

“O que nós temos hoje são pacientes que podem estar desenvolvendo ideação suicida, tentativa de suicídio e até mesmo o auto-lesionamento”

gestor em Saúde do Seas, Marden Filho

O projeto “Abraço em Família” foi desenvolvido pelo Seas para aproximar as famílias e os jovens que vivem nos centros socioeducativos, além de dar mais transparência ao processo ressocializador. “Eles declamam poesias, cantam músicas, e a família passa por esse processo de maior aproximação com os adolescentes e de cargas efetivas bastante potentes”, afirma Marden Filho. A iniciativa visa, principalmente, reduzir a possibilidade de retorno dos jovens egressos do sistema. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que a presença de jovens nos centros tem diminuído nos últimos anos, após a adoção da humanização no atendimento aos menores infratores.

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2018 e 2019.

A iniciativa também é resultado do trabalho do coletivo Vozes, uma associação que reúne as famílias de adolescentes do sistema socioeducativo ou que já cumpriram pena em um dos centros. Além de promover reuniões em que são compartilhadas as experiências de cada membro, o grupo realiza debates e busca vigiar a implementação dos direitos básicos aos internos.

Para Benedito Bezerra, essa é não é apenas a segunda chance para a recuperação dos jovens e para a reconstrução dos laços familiares, mas também para a restauração da confiança no Estado com aqueles que foram mais atingidos. “Nós estamos aqui, a passos de formiga, pra tentar mudar. Eu não tive o prazer de ver o meu entrar em um centro educacional e sair de lá um jovem recuperado. Mas eu creio que, mesmo velhinho, ainda vou ver isso, porque ainda têm vários outros Jonathans”, encerra.

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